domingo, 12 de junho de 2011

"O Vapor"

"Entre a Ponte Nova e o Torreão, sobre a Ribeira de Santa Luzia ficava o "vapor", essa habitação única que era um bairro em miniatura, uma republica de lavadeiras presidida por uma velha vesga que sabia da vida de toda a gente, tanta roupa já tinha lavado. Não que ela tivesse encargos sobre essa irmandade, mas como uma abelha-mestra, tinham-lhe um certo respeito as outras vespas que na sua presença se abstinham um pouco de pregar brutal ferroada no credito alheio. Mas, estava-lhes na massa do sangue a divisa da classe: ensaboar a roupa suja.

Uma habitação singular
Quem mandou fazer aquela edificação esguia de tabuado, escorado de margem a margem, da ribeira, nunca se nos deu de o saber, mas talvez começasse por servir de ponte, antes de ser armada a colmeia com o seu corredor muito estreito ao centro, tendo dos lados as pequenas células independentes com vista para montante e para a foz. A cor vermelha com que foi pintado dava-lhe um aspecto de casco de navio e, ou fosse por esta razão ou pelo seu formato esguio, o certo é que todos conheciam a habitação tão singular pelo nome de "vapor". Que enormidade de coisas se arrumavam ali a dentro: uma cama velha, um baú ou caixa de pinho, uma cadeira sem costas ou de uma perna a menos, um Santo Antoninho de barro, ervas bentas pelas paredes, estampas encardidas, guitas cruzadas para dependurar roupa, em fogareiro de pedra, um tacho de folha, um cesto barreleiro, uma vassoura de palma, uma celha com agua de anil, e mais. A lavadeira é uma mulher fecunda. Tinham ali uma média de cinco filhos. Os mais pequenos em fralda, muito sujos, sempre a choramingar, os maiorinhos, já de calças, mas rotas, com um cordel traçado a servir de suspensórios, não desmereciam no fraseado das suas progenitoras.

Os encantos da miudagem
Por baixo do "vapor" havia no verão uma represa feita na ribeira com os calhaus do leito cimentados a barro, leivas e ervas raizantes dos charcos, onde se empoçava a agua, que solta da comporta todas as semanas, varria para juzante as imundices acumuladas no leito. Era este açude o gáudio do rapazio. Naquela agua turva do sabão, escoada das lavagens, cheia de bolhas, grossas que rebentavam só de encontro às margens, medravam eirós verde-negros, sacudindo o rabo como serpentes de agua. Faziam pesca deles, os rapazes, com um alfinete torto em forma de anzol, levando como isca uma minhoca que se debatia no suplicio, atravessada de meio a meio. As vezes havia regatas de celhas, sentados os garotos ao fundo delas com os pés cruzados, servindo-se das mãos bem espalmadas para remar. Se acaso abalroavam as embarcações, metendo agua dentro, não havia perigo, porque eram como peixes a nadar, saindo depois dali molhados, quais pintos ao sair da casca, e o menos que os esperavam era uma sova de sapato, enquanto a roupa despida enxugava ao sol.
Foi demolido o "Vapor" que ameaçava ruína, desconjuntado e tremente ao marulho das enxurradas de inverno. Lavada em lágrimas vem a ribeira, mais lavado de ares ficou talvez o recanto, sem as lavadeiras.
Foi-se o "Vapor" como um vapor de agua que se perde, e como não figura nas estaticistas do porto, recordação, a vapor assim narrada."

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